sexta-feira, 17 de julho de 2009

Sobre o consumo consciente

Revista SORRIA* – edição nº 6 – jan/fev2009 – pgs. 16 a 19
www.revistasorria.com.br



O consumo é um ato político tão forte quanto o voto. Ao comprar um produto, apoiamos a maneira como ele foi feito, o que pode incluir poluição e trabalho escravo

VOCE USARIA UMA CAMISETA com os dizeres "Eu destruo a natureza" ou "Danem-se as pessoas"? Perguntando assim, fica fácil responder que não. Mas e se formularmos de outro jeito: você daria dinheiro a uma organização que desmata a Amazônia ou que é parceira de quem explora a trabalho infantil? Se a resposta ainda é não, pense duas vezes - porque, se você não se inte­ressa em saber como se comportam as empresas de que compra, pode estar, sem querer, apoiando o desrespeito aos direitos humanos e a destruição do planeta.

“O consumo é um ato político, é tão forte quanto o voto”, diz Leonardo Saka­moto, coordenador da Repórter Brasil, or­ganização não-governamental que atua no combate ao trabalho escravo. "Se você compra, está endossando a forma como o item foi produzido. E essa forma pode incluir poluição, trabalho escravo e até mortes", afirma Heloisa de Mello, gerente de operações do Instituto Akatu, entidade que divulga a consumo consciente, acrescenta: "Todo consumo causa impacto. Ao ter consciência disso, podemos aumentar os impactos positivos, diminuir as negativos e contribuir para um mundo mais sustentável".

O produtor ético

Pergunte a seus pais ou avós o que eles le­vavam em conta na hora de escolher entre diferentes marcas de um mesmo produto, e eles provavelmente responderão apenas "preço e qualidade". Mas os tempos muda­ram. As últimas décadas foram marcadas por um aumento sem precedentes no ní­vel educacional da população e por um intenso desenvolvimento das telecomuni­cações, o que tem resultado numa socie­dade cada vez mais consciente e organiza­da. Mais do que nunca, está evidente que a exploração irresponsável da natureza e o aumento da desigualdade social podem levar o mundo ao colapso, e para evitar essa tragédia e preciso mudar o modo como vivemos. Nesse contexto, surgiram dois conceitos paralelos e interdependen­tes para repensar nossa maneira de produ­zir e comprar: a responsabilidade social empresarial e o consumo consciente.

A responsabilidade social é uma nova maneira de as empresas enxergarem o mundo. É responsável quem atua de forma ética, transparente, justa e sustentável com todos os públicos com os quais se relaciona: empregados, colaboradores, fornecedores, parceiros, clientes, consumidores e a socie­dade em geral, incluindo o meio ambiente. Na prática, o conceito implica atitudes que vão muito além de apenas respeitar as leis, como estimular os funcionários a adotar hábitos saudáveis, gerar o mínimo possível de poluição, não desperdiçar eletricidade nem água, oferecer produtos e serviços se­guros, atender as reclamações dos clientes, buscar soluções para os problemas da co­munidade e ainda estimular todos os par­ceiros a seguir os mesmos passos.

Como você pode imaginar, adotar a responsabilidade social não é fácil: envolve um trabalho conjunto entre todas as partes da empresa, pode exigir grandes mudanças nos negócios e ate diminuir os lucros. Não à toa, muitas companhias se dizem responsáveis, quando na verdade cumprem ape­nas alguns itens e ignoram os demais. "Não adianta uma empresa desenvolver progra­mas voltados para entidades sociais se, ao mesmo tempo, remunera mal seus funcionários e paga propinas a fiscais do gover­no", exemplifica o Instituto Ethos, a mais respeitada organização brasileira voltada para a promoção da responsabilidade so­cial. Ou seja, não basta parecer legal e pre­ocupado nas propagandas da TV: é preciso ser. E se os vilões se fantasiam de mocinhos, desmascará-los e um dever de todos nós.

O comprador ativo

Consumir não é apenas comprar. Antes de entregar o dinheiro ao vendedor, decidimos o que consumir (vamos almoçar peixe, car­ne ou só salada?), por que consumir (para matar a fome, para sentir prazer, para pas­sar o tempo?), de quem consumir (de uma rede de lanchonetes que financia guerras ou de um feirante que não usa agrotóxi­cos?) e como consumir (vamos nos servir de muito mais comida do que precisamos ou vamos nos preocupar com o desperdício?). Depois, ainda está sob nossa respon­sabilidade o descarte (vamos jogar as so­bras no lixo, doar a alguém necessitado ou depositar numa composteira?).

Levar em consideração todos os im­pactos que o consumo nosso de cada dia causa sobre a sociedade e a natureza é uma tarefa difícil, sim. Mas o cenário é pro­missor. Segundo pesquisa do Instituto Aka­tu, 28% dos consumidores brasileiros já têm hábitos de compra sustentáveis, preferindo, por exemplo, produtos orgânicos (cuja produção visa à proteção dos recursos naturais, evitando, entre outros cuidados, o uso de agrotóxicos). Parece pouco, mas pode-se notar que outros tipos de consumo consciente, menos "engajados", já ganham muito mais adeptos. Por exemplo: 75% dos brasileiros se preocupam em economizar água e luz com pequenas atitudes do dia­-a-dia, 45% planejam as compras com base em informações dos rótulos e 31% são adeptos do reaproveitamento e da recicla­gem de materiais. Estamos no rumo.

O publicitário Marcelo Alemi, de 28 anos, é parte dessa turma. Há cerca de quatro anos, depois de ler uma reportagem sobre os elementos tóxicos presentes nas pilhas comuns, ele passou a só usar recarregáveis, para produzir menos lixo. Desde que visitou uma grande empresa do setor avícola, parou de comer frango industrializado, por não concordar com as condições nas quais os animais são criados. Também usa sacolas retornáveis no mercado, não pede o comprovante de pagamento do cartão de débito para poupar papel e só compra eletrodomésticos com o selo Procel, que identifica os produtos que menos desperdiçam energia. “Procuro me manter informado sobre temas como sustentabilidade e ecoeficiência e, sempre que posso, mudo meus hábitos para colaborar", conta.

De você eu não compro

Quando evita comprar de empresas que não agem da maneira ética, que ele considera correta, Marcelo lança mão de um artifício que há séculos e arma na defesa dos direitos dos cidadãos: o boicote. "Esse tipo de manifestação não violenta tem sido usado para protestar contra questões globais ou nacionais, tais como práticas trabalhistas injustas, liberdades civis, discriminações, direitos humanos, proteção aos animais e ao meio ambiente", afirma a pesquisadora Marta Caputo, que escreveu uma dissertação de mestrado sobre o assunto.

Um dos casos mais célebres foi o boicote aos produtos britânicos liderado nos anos 1930, na Índia, por Mahatma Gandhi. Na época, o país era uma colônia do Reino Unido e lutava pela independência. O pacifista Gandhi mobilizou a população para que deixasse de comprar tudo o que fosse britânico, como tecidos e roupas, mesmo que para isso as pessoas tivessem de voltar a usar teares manuais. O prejuízo causado pelo boicote foi fundamental para pressionar o Reino Unido a libertar o país.

Na campanha pró-responsabilidade social, os boicotes também já provaram ser eficientes. Um dos casos mais conhecidos aconteceu com a multinacional de tênis e artigos esportivos Nike. Em 1997, um vazamento dos dados de uma auditoria interna revelou ao mundo que os funcionários de uma fábrica da marca no Vietnã trabalhavam em uma situação altamente degradante. Eram expostos a agentes cancerígenos, não usavam equipamentos de segurança, tinham problemas respiratórios e recebiam apenas 10 dólares por 65 horas de trabalho semanal. Apesar da repercussão internacional, a Nike não admitiu os fatos. Protestos e campanhas de boicote pipocaram por todo o mundo, levando os produtos da marca a encalhar nas lojas. Em dois anos, as ações da empresa na Bolsa de Nova York caíram 43%, um enorme prejuízo financeiro e de imagem. Sem saída, a Nike assumiu as falhas e comprometeu-se a corrigi-las. A partir de então, suas fábricas passaram a ser observadas por ONGs internacionais.

No Brasil, um caso em que empresas começaram a se mexer para garantir ca­deias produtivas mais justas foi capitaneado par uma aliança entre a ONG Repórter Brasil, a Organização Internacional do Trabalho e o Instituto Ethos. Em 2004, a Repórter Brasil fez uma extensa pesquisa para descobrir para onde iam os produtos de fazendas que exploravam trabalho escravo, a partir de uma lista elaborada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Identificados os caminhos desses produtos "sujos" até o consumidor final, as empresas compradoras, como redes de supermercados, foram informadas sobre o que seus fornecedores faziam de ilegal. Resultado? Mais de 100 delas aderiram ao Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil, em que se comprometem a não comprar de fornecedores criminosos. Hoje, as signatárias do pacto representam cerca de 20% do PIB nacional. "Estimulamos os consumidores a dar preferência às empresas que fazem parte do pacto e a pressioná-las para que cumpram o acordo", diz Leonardo Sakamoto, coordenador da Repórter Brasil.

Infelizmente, o boicote ainda não é uma arma muito usada em nosso país. Segundo uma pesquisa realizada pelos institutos Akatu e Ethos em 2006 e 2007, apesar de 75% dos brasileiros saberem que têm poder de influenciar a responsabilidade social das empresas, apenas 14% deixam de comprar das companhias que consideram irresponsáveis, e só 12% premiam as responsáveis escolhendo suas marcas. O recorde de boicote é registrado na America do Norte, onde 55% dos consumidores afirmam punir as empresas irresponsáveis, deixando de dar seu dinheiro a elas.

O maior instrumento que o consumidor tem em mãos para escolher as empresas das quais vai comprar ou não é a informação", afirma Heloisa Mello, do Instituto Akatu. E como chegar a ela? "Por meio da imprensa, das pessoas de nosso círculo social ou das próprias empresas, em suas páginas na internet ou serviço de atendimento ao c1iente", completa. Ficar de olho em balanços de práticas socioambientais, nas listas de empresas sujas e limpas divulgadas por ONGs e nas certificações estampadas nas embalagens (veja no infográfico) também é uma boa dica. Vale tudo, menos estampar na testa, desavisadamente, que não tem dó de desmatar a Amazônia, maltratar animais ou explorar crianças.

PERIGO NA CESTINHA
Fique de olho em produtos com boa chance de conter, em suas cadeias produtivas, falhas graves contra as pessoas e o meio ambiente


PODE CONTER: TRABALHO ESCRAVO
A maioria das fazendas que usam trabalho escravo é voltada para a pecuária.
O QUE FAZER: prefira frigoríficos e revendedores que assinaram o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo no Brasil.
ONDE SE INFORMAR: www.reporterbrasil.org.br/pacto/signatarios


PODE CONTER: DESTRUIÇÃO DAS FLORESTAS
Carne, madeira e soja são os grandes vilões do desmatamento ilegal, poluição de rios e oceanos.
O QUE FAZER: prefira produtores e revendedores que fazem parte do pacto Conexões Sustentáveis. Escolha produtos de madeira e papel que têm o selo FSC.
ONDE SE INFORMAR:
www.ethos.org.br/sistemas/conexoessustentaveis


PODE CONTER: DESPERDÍCIO DE ENERGIA
O gasto desnecessário de eletricidade leva à construção de novas usinas, que sempre causam algum dano ao ambiente
O QUE FAZER: dê preferência a eletrodomésticos com o selo Procel de eficiência energética.
ONDE SE INFORMAR: www.eletrobras.com/procel


PODE CONTER: TRABALHO INFANTIL
Lavouras de cana, café, frutas e uma série de outros produtos agrícolas podem usar crianças – que deveriam estar na escola.
O QUE FAZER: prefira fornecedores e revendedores com o selo Amigo da Criança.
ONDE SE INFORMAR:
www.fundabrinq.org.br/portal/alias_abrinq/lang_pt-BR/tabid_343/default.aspx


PODE CONTER: TESTES EM ANIMAIS
Muitas empresas de cosméticos são acusadas de maltratar animais em testes de laboratório.
O QUE FAZER: prefira fornecedores que estejam na lista da entidade ambiental Projeto Esperança Animal (PEA)
ONDE SE INFORMAR:
www.pea.org.br/crueldade/testes/naotestam.htm


SAIBA MAIS:
Pesquisa Akatu de consumo consciente:
www.centroakatu.org.br/cr/jsp/pesquisa_empresa/Pesq_EmpMarcProd.jsp

Catálogo Sustentável da Fundação Getulio Vargas
www.catalogosustentavel.com.br

Lista de empresas com reclamações no Procon de São Paulo
www.procon.sp.gov.br/noticia.asp?id=777

*Sorria é uma revista social. O preço de R$ 2,50 que você paga por ela, descontados os impostos, é 100% doado ao GRAACC (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer) e colocada à venda nas lojas da Droga Raia.

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