O mar não está mais para a família Peixe 30 / 10 / 2000 fonte Folha de S. Paulo autor Fernando Gabeira
ARACAJU, para quem não conhece, ainda é uma tranquila capital do Nordeste. Novos e imponentes edifícios foram erguidos nos últimos anos, shoppings centers brotaram aqui e ali, como, de resto, aconteceu em todas as principais cidades do país.Só que grande parte da Aracaju moderna foi conquistada aterrando os manguezais. As multidões que atravancam as galerias climatizadas das butiques, na verdade, são os vencedores pisoteando o túmulo de uma paisagem dilacerada para sempre.A família Peixe, Zé e Rita, irmãos que nasceram nas primeiras décadas do século 20, ele nos anos 20, ela nos anos 30, contemplam assustados o rumo que o progresso tomou, soterrando as imagens da infância à beira-mar.Zé Peixe, hoje com 74 anos, é o mais importante prático da história do Brasil. Conhece como ninguém a barra do rio Sergipe e consegue levar navios para um porto seguro, analisando ventos, prevendo o movimento das areias e, às vezes, jogando-se no mar bravio para achar a passagem.Zé Peixe é uma lenda. Antes mesmo de morrer, virou estátua de bronze, mas rejeita a idéia de se aposentar. Continua dormindo no chão, à espera de que o chamem para levar um navio a uma rota segura, ou salvar marujos e barcos perdidos. Ele salva mesmo. Não só porque é capaz de nadar 11 km, mas porque se atira da altura de 17 metros, cerca de quatro andares, nas águas do mar.Zé Peixe ainda mora na orla. Mergulha todas as manhãs, mas reconhece que a água está poluída com esgoto. Rita, que aos 15 anos salvou, ao lado do irmão, uma tripulação de um barco do Rio Grande do Norte, hoje só nada na piscina de sua casa.A história da família Peixe é ligada aos manguezais de Aracaju. Zé conhece todos e previu o desequilíbrio que os aterros iriam provocar. Mas não conseguiu impedi-los. Vive para o mar, sai de manhã, volta no final da tarde, só come frutas e diz que, desde a Segunda Guerra Mundial, não toma banho de água doce. Olhando a pele curtida de sol e sal, você acredita nele. Zé e Rita Peixe nadam desde meninos. Nem se lembram se um dia aprenderam a nadar. Acham que já nasceram sabendo.Num casarão velho em Aracaju, Zé Peixe costuma olhar os grandes edifícios e se lembrar dos manguezais da infância. Seu primeiro barco foi feito com um baú da família, pequena travessura que apontava para o destino no mar. Ele viu os corpos de náufragos de um navio, o Aníbal Benevolo, afundado por bombardeio alemão na Segunda Guerra. A partir daí, nunca mais ninguém se afogou perto dele.Agora, não só os manguezais da infância foram embora. Os próprios navios foram desaparecendo a partir do grande impulso rodoviário da década de 50. A escolha do automóvel como símbolo da liberdade individual e dos shoppings centers como espaço de comércio e convivência mudou o horizonte. Zé Peixe ainda ensina ao seu neto os mistérios da barra do rio Sergipe, mas sabe que, há algumas décadas, o mar não está mais para peixe em Aracaju.Conheci Zé Peixe em 96. Foi me esperar no aeroporto e tinha medo de não poder entrar, porque estava descalço. Só usa sapatos aos domingos, para entrar na missa dominical. Desde o meio da década, interesso-me por ele e penso na importância de preservar suas memórias.Zé Peixe vive no casarão da família e todos os seus papéis, com medalhas, títulos e diplomas, estão num quarto cheio de poeira e bolor, alguns já literalmente estraçalhados. Isso tem um lado bom, porque ele percebe que consegue sobreviver às suas próprias memórias, que vão se acabando enquanto ele continua firme, nadando de uma praia para outra, levando tudo o que precisa num plástico colado ao calção.Para o Brasil, no entanto, era fundamental que encontrássemos alguma maneira de preservar a memória desse homem que assombrou vários capitães estrangeiros. Um russo chegou a pedir que o detivessem quando estava para se lançar ao mar.Achou que Zé Peixe estava se suicidando, quando, na verdade, estava fazendo o que mais gostava de fazer: jogar-se dos navios que levava para fora da barra e voltar nadando como um menino dos manguezais.
sábado, 8 de novembro de 2008
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