segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sobre a Renda Irlandeza sergipana

"A maioria das rendeiras hoje trabalha por encomenda, quer seja parcelada ou direta.Vivem na dependência absoluta e imediata das demandas externas e, se não há encomenda, não têm como trabalhar na renda". (pg. 21)
Materiais:
Renda
"A renda irlandesa é uma das modalidades de renda de agulha, sendo esse o instrumento básico com o qual as hábeis mãos das artesãs transformam cordões e fios de linha em verdadeiras obras de arte". (pg.22)
Técnicas:
Trabalhos de agulha, renda irlandesa
"A renda de Divina Pastora classifica-se como irlandesa ou ponto de Irlanda". (pg.11)
"A irlandesa é renda que se faz com muitos pontos. Teoricamente esse número é indefinido, pois no dizer de uma rendeira "a gente vê na revista copia e faz", ou seja, novos pontos podem ser adicionados aos tradicionais...O mais comum é que se utilizem do redinha, o ponto básico a que chamam muitas vezes simplesmente o ponto, sem nenhum qualificativo, e que empregam em grandes áreas das costuras, sendo usuais também ilhós, aranha, picote e barrete. Os pontos conhecidos e suas variantes ascendem a quase duas dezenas, e chama a atenção a quantidade deles cuja nomeação é feita recorrendo-se a animais e vegetais, com base na analogia entre formas semelhantes presentes em seres da natureza que integram o universo das rendeiras. Entre eles pé-de-galinha, dente-de-jegue, espinha-de-peixe, aranha, boca-de-sapo, abacaxi". (pg. 26)
Descrição do processo técnico:
"A execução da renda irlandesa obedece a uma seqüência de fases que pode ser resumidamente assim apresentada: Riscar ou Copiar em papel transparente o desenho a ser elaborado. No caso das peças grandes, o risco é recortado, e as partes são distribuídas a várias rendeiras para execução da renda. Fixar o papel riscado sobre papel grosso. Alinhavar o lacê sobre o risco, acompanhando as formas do desenho. Fixar o papel com lacê já alinhavado em pequena almofada ou travesseiro, procedimento que é mais usual quando se trabalha com peças grandes. Preencher os espaços vazios entre o lacê utilizando vários pontos que são tecidos com agulha e linha. Desse modo são interligadas as formas contornadas com o lacê, que serve de suporte à execução dos pontos. Essa é a fase mais demorada da tecelagem da renda. Separar a renda do papel e do risco sobre os quais foi executada, cortando-se os alinhavos que os prendiam. No caso das peças grandes processa-se a emenda das partes antes de separar a renda do papel. Limpar a peça de renda, catando os fiapos de linha, restos de alinhavo que a ela ficaram presos. Todo o processo de fabricação da renda é realizado pelo avesso, de forma que o direito fica para dentro, protegido pelo papel, sendo exposto apenas quando, no final do trabalho, esse é retirado. Isso ajuda a preservar a renda de sujeira durante o longo processo de elaboração das peças grandes que às vezes dura meses". (pg. 22)
"A renda irlandesa é uma das modalidades de renda de agulha, sendo esse o instrumento básico com o qual as hábeis mãos das artesãs transformam cordões e fios de linha em verdadeiras obras de arte. Além da agulha, as rendeiras usam uma almofada para apoiar o papel sobre o qual ela é tecida, tesourinha e eventualmente, um dedal, objeto que nem todas utilizam, pois acham que diminui a destreza dos dedos na execução dos pontos. Um pauzinho roliço, ou mesmo um lápis fino, é utilizado na confecção dos ilhoses, um dos pontos empregados na renda". (pg. 22)
Divisão do trabalho:
"As peças grandes são quase sempre obras coletivas, em que o trabalho de cada uma, depois de pronto, é costurado ao das outras para formar o todo, num arranjo que envolve experiência e conhecimentos a fim de assegurar homogeneidade à renda, perfeito encaixe das emendas na recomposição do risco original e bom acabamento". (pg. 29)
"...no município de Divina Pastora , em Sergipe, 114 mulheres vivem da produção artesanal de renda irlandesa". (pg. 9)
"...três irmãs - Marocas (Maria Engrácia), Sinhá (Ercília) e Dina (Berenice) - aprenderam a técnica e a teriam difundido entre as mulheres da cidade". (pg.16)
"...Aurélia Maria José, mais conhecida como Dé, Lourdes, Alzira e muitas outras, a referenciar cadeias em que mestras e aprendizes se desdobravam para formar outros elos perpetuadores da técnica trazida da velha Europa, passada e repassada pelas mãos de centenas de mulheres brancas, negras, mestiças de diferentes matizes étnicos e sociais". (pg.16)
Contexto socioeconômico:
"Com 2833 habitantes (IBGE 1996), 60% dos quais concentrados na zona urbana, o município enfrenta hoje os problemas que a crise da monocultura açucareira trouxe à região. Com as atividades econômicas praticamente estagnadas, são os royalties decorrentes da extração de petróleo os principais recursos que fazem da administração pública uma das pucas oportunidades de emprego para a população local, ao lado da confecção de renda, que ocupa mais de uma centena de artesãs". (pg.11)
"A prática desse importante saber que a cultura regional oferece como recurso para a geração de renda encontra-se atualmente ameaçada, sobretudo em razão das dificuldades de comercialização dos produtos feitos pelas artesãs...Para que esse saber volte a ocupar o importante papel que tradicionalmente te desempenhado, enquanto recurso gerador de renda acessível a um número significativo de famílias pastorenses, o Programa Artesanato Solidário pretende criar, com as rendeiras de Divina Pastora, meios para que a falta de capital de giro e as dificuldades de comercialização sejam enfrentadas coletivamente. Para tanto, tem sido fundamental fortalecer o associativismo e consolidar as bases jurídicas, contábeis e administrativas de suas atividades...tem sido, também, impresindível promover o aperfeiçoamento das executantes, valorizando a relação entre as aprendizes e as mais experientes e fortalecendo os mecanismos tradicionais de controle de qualidade". (pg.11/12)
"...foi a atividade açucareira que deixou marcas mais fortes na feição socioeconômica e cultural do município, até mesmo em sua composição étnica, na qual a presença negra é bem visível". (pg.13)
"Embora essa renda seja produzida em outras localidades de Sergipe, é em Divina Pastora que há a maior concentração de rendeiras". (pg.14)
"Há uma grande diversidade interna no segmento das rendeiras de Divina Pastora, diversidade que se expressa nos ganhos dos grupos domésticos, nas moradas, nas profissões que exercem e nos modos de encaixar-se nas formas de organização do trabalho com a renda...umas estão iniciando sua vida na arte enquanto outras estão abandonando o ofício devido à velhice, ao desencanto, ou simplesmente por falta de tempo, absorvidas por atividades mais lucrativas. Há ainda as que migram, principalmente para Aracaju, a capital do estado, situada a 39km de distância". (pg.17)
"De modo que o emprego é sempre o sonho de todas elas. Fazer renda é um trabalho que se acrescenta às tarefas de donas de casa, de varredoras de rua, de merendeiras, de secretárias, de estudantes, de professoras, de mulheres jovens e velhas em cujas vidas o fazer renda se coloca de muitas formas, atendendo a diferentes anseios". (pg.18)
"Eu ia para a escola de manhã, e quando era de tarde botava tudo na frente e levava pra roça. Os irmãos já tinha ido de manhã junto com pai trabalhar nos canaviais. Eu nunca fui pra palha da cana, mas trabalhei muito na enxada. Aí resolvi a fazer renda, que era uma coisa que as mulheres daqui faziam muito. Aprendi e não fui mais pra roça. Aqui não tinha outra coisa pra se fazer. Era esse o trabalho pra mulher". (pg.18)
"Muitas meninas que substituíram o trabalho braçal nas roças e canaviais pela agulha puderam também, com os ganhos da renda, custear seus estudos, tornando-se algumas delas professoras, categoria significativa no conjunto das rendeiras da cidade". (pg.19)
"Gostar do que fazem é um traço das mulheres que trabalham com renda irlandesa em Divina Pastora. Trabalham e encantam-se com a beleza das rendas que tecem, e terminam fazendo do trabalho ofício prazeroso, que lhes permite fugir da indesejada situação de não ter o que fazer". (pg. 19) "Esse componente lúdico do fazer renda, razão apontada por muitas rendeiras entre os motivos invocados para justificar a aprendizagem e a dedicação a essa arte, torna-se mais compreensível quando se sabe que na cidade não há alternativas de divertimentos...É comum encontrar rendeiras trabalhando isoladas ou em grupos, à sombra das árvores na praça enquanto observam o vai e vem das pessoas que transitam pela cidade e mantém animadas conversas com as companheiras". (pg.18)
"Família tem um papel muito importante no processo de produção e comercialização". (pg. 20) "Tecer a renda é atividade exclusivamente feminina." (pg. 20)
"Mães, filhas, avós, netas, tias, primas, noras, cunhadas são referidas a todo momento como parceiras de trabalho, embora a produção da renda não seja circunscrita apenas pelo parentesco, admitindo outros critérios na formação das redes e dos modos de organização do trabalho, gerando várias categorias de rendeiras a depender do modo como se inserem na produção e na articulação que conseguem estabelecer com o mercado... Há rendeiras que trabalham por conta própria, as que trabalham por encomenda, as contratantes, que repassam trabalho para outras, pagando-lhes pela mão de obra e, às vezes, atuando como intermediárias... A maioria das rendeiras hoje trabalha sobre encomenda, quer seja direta ou parcelada. Vivem na dependência absoluta e imediata das demandas externas e, se não há encomenda, não tem como trabalhar a renda...No momento, por intermédio do Programa Artesanato Solidário desenvolvido pelo Conselho da Comunidade Solidária, deu-se início à criação de uma associação visando a melhores condições de produção e comercialização ". (pg.20/21)
"Viver só da renda é muito difícil, dizem elas, porque é um ganho incerto". (pg.18)
"Quando tem trabalho você ganha, quando não tem fica sem nada. E a gente tem de comer todo dia". (pg.18)
Contexto cultural:
"...a renda irlandesa e a peregrinação ao Santuário da Divina Pastora constituem-se em sinais distintivos de uma identidade local". (pg.13)
"A busca das origens sempre é um desafio a mover a curiosidade dos homens. Com relação à renda irlandesa não é diferente. Os mais eruditos buscam reatar laços com as antigas tradições dos ofícios europeus, vinculando-a às rendas de Milão (Cedran 1979) ou, mais especificamente, ás mudanças que se seguem à Revolução Industrial e ao papel desempenhado por freiras na educação feminina no Brasil, na qual se incluíam rendas e bordados. Durante o século 19, quando a influência francesa marcou fortemente a sociedade brasileira, dos livros importados constavam obras destinadas a ensinar às mulheres uma grande variedade de trabalhos manuais. Entre esses, a Encyclopédie des Ouvrages de Dames, publicado por Thérèse de Dillmont...É, portanto, nesse contexto de múltiplas influências européias sobre a sociedade brasileira do século 19 e da circularidade dos saberes entre diferentes segmentos sociais (Burke, 1989) que se situa a introdução da renda irlandesa em Divina Pastora". (pg.14/ 15)
"Com base em depoimentos das rendeiras colhidos no final da década de 1970, Lourdes Cedran escreveu: Fomos informados de que a pessoa que introduziu a renda irlandesa em Sergipe foi Da. Ana Rolemberg, já falecida, que aprendeu com Da. Violeta Sayão Dantas e a ensinou a Júlia Franco. Esta por sua vez, a transmitiu a Marocas, Ercília e Sinhá. Estas últimas três já beirando os 80 anos, ensinam até hoje o ofício da renda a quase todas as outras artesãs de Divina Pastora (Cedran 1979)". (pg.15)
"Desse modo, o momento inaugural da renda irlandesa em Divina Pastora evoca o envolvimento de senhoras da aristocracia local e de pessoas simples de seu círculo e relações, muitas delas migradas das áreas rurais, dos engenhos que entravam de fogo morto afugentando os trabalhadores que iam viver na pequena vila, sob a proteção dos antigos senhores. Aí perdura a importância dos trabalhos de agulha tão visíveis na vida das casas-grandes, conforme o registro de vários autores desde a colônia, aproximando as mulheres ricas das pobes e remediadas, a quem encarregavam de fazer, sob encomenda, os trabalhos de rendas e bordados". (pg. 16)"A versão hoje recolhida com rendeiras sexagenárias, muitas das quais incluem em suas histórias de vida passagens pelos antigos engenhos e fazendas, repete em linhas gerais aquela registrada por Lourdes Cedran em que três irmãs - Marocas (Maria Engrácia), Sinhá (Ercília) e Dina (Berenice) - aprenderam a técnica e a teriam difundido em meio às mulheres da cidade. Essa é a versão hegemônica que vigora para as rendeiras que moram nas imediações da igreja e que giram em torno das descendentes da tríade de mulheres a que se atribue a disseminação da renda irlandesa na cidade. Não raro outros nomes são evocados ao se falar a respeito da história da renda, legitimando-se com eles outros grupos de organização de rendeiras hoje atuantes na cidade, onde antigas mestras têm lugar de destaque no imaginário local. Aos já citados acrescentam-se os de Aurélia, Maria José, mais conhecida como Dé, Lourdes, Alzira e muitas outras, a referenciar cadeias em que mestras e aprendizes se desdobram para formar outros elos perpetuadores da técnica trazida da velha Europa, passada e repassada pelas mãos de centenas de mulheres brancas, negras e mestiças de diferentes matizes étnicos e sociais".(pg. 16)
Notas:
Fonte:
DANTAS, Beatriz Góis. Renda de Divina Pastora. Rio de Janeiro: Funarte/CNFCP, 2001.

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