Quando o povo de Capela Sergipe
O fez correr da Cidade
"Trata-se de uma história pública, mas ocorrida entre os meus. Encontrei algo na home-page — pena que "página-casa" soe tão esquisito... — do município de Capela, mas lembrava dela sendo contada por pai — que nem era nascido quando o fato ocorreu — e tia (uma delas), já uma mocinha na época, além de boa contadora de histórias. Segue parte do que escutei.* * * * *Na primeira das duas vezes em que Lampião esteve em Capela (Sergipe), em 24 de outubro de 1929, mandou chamar o meu avô, Antão Correia de Andrade — prefeito à época —, exigindo que entrasse na cidade com ele. Ao encontro lá se foi seu Correia, do alto dos seus um metro e sessenta e poucos, após despedir-se de (e deixar muito preocupados) mulher e filhos, sem saber se voltaria sobre os próprios cascos.Uma vez diante do bando, um curto diálogo se deu, ao que parece, com Virgulino pedindo 20 mil contos de réis para sair por onde veio e sem causar muito furdunço. Seu Correia, voz mansa, bem que avisou: mesmo indo de casa em casa, raspando tudo o que encontrasse, o cangaceiro não conseguiria mais do que cinco. Lampião aceitou os tais cinco contos, mas não foi aí que tudo acabou.Acompanhando a conversa estava Corisco, o “diabo louro” — dos capangas, o mais avessado —, que arrodeava o meu avô com chispas nos olhos, pisando-lhe um dos pés com suas pesadas botas, meneando seu longo punhal e perguntando ao chefe, entre cerimônia e respeito: “num vai rolar um sanguezinho não, dotô?” Ao que tudo indica (e para sorte deste escriba), Lampião não deu trela para o seu segundo, daí que seu Correia só veio a partir desta uns bons quarenta e quatro anos depois, a tempo de pôr o meu pai no mundo e viver outras a(e des)venturas.Disse eu que não findara ali o ocorrido, e não minto. O que significa? A quebra da palavra empenhada, com o furdunço seguindo a passos largos em direção à cidade. Pois a confusão chegou em bando ao Cine-Teatro Capela, virgens (e curiosos) que eram os olhos do cangaceiro, em matéria de cinematografia muda e com orquestra. Lampião adentrado no recinto, acenderam-se as luzes e o povo põe-se a querer sair. “Daqui ninguém sai, e quem correr vê o gosto da bala atrás”, teria dito. Do ocorrido, conta-se que o juiz local escafedeu-se, bem antes de lhe perseguirem as balas, pulando o muro e escondendo-se num convento; e que era “Anjos das Ruas” o título do filme, de Frank Borzage — com Janet Gaynor, Oscar de melhor atriz. Dito aquilo e contado isto, Lampião mandou que as luzes se apagassem e que o filme continuasse — ordem cumprida de forma pouco ortodoxa, com o nervosismo do operador do projetor fazendo com que na tela os Anjos passassem de ponta-cabeça. Se bem que como a novidade era tanta, o facínora nem se deu conta, ainda que a história diga que ele não gostou do filme e saiu.Não se sabe se pelo adiantado da hora ou pelo enfado do filme, ocorreu do apetite dirigir o bando para uma pensão, onde todos se refestelaram antes de partirem para a estação de trem, à espera dos anunciados soldados que viriam da Bahia. Sim, porque esqueci de dizer, a milícia da cidade contava apenas com um soldado e um mísero fuzil — não sei se é exagero de quem me contou... —, ambos de paradeiro desconhecido (por ignorância deste que vos conta, que é para não cometer injustiças). E desconhecida também era a hora de chegada dos tais reforços do estado vizinho, já que naquele tempo o ritmo das coisas era outro. Restou ao meliante receber o dinheiro prometido, pagar pelas compras que fez, ganhar um livro sobre a vida de Jesus — posto que o sociopata era temente a Deus, também ouvi dizer —, reunir o seu bando e ir embora, para retornar mais uma vez dois anos depois, fazer reféns nas fazendas da região e mandar o irmão do vigário informar que entraria de novo na cidade. Só que desta vez as coisas não se deram como de antanho. Recado dado, resposta demorada; confiante, decidiu entrar na cidade, mas zuniram-lhe balas. Isso porque o povo se organizou e armou-se como pôde, alguns postando-se no alto das torres da igreja de Nossa Senhora da Purificação, nem tão altas assim, e resolvidos a mandar o filho do demo pro diabo que o carregasse.Conta o Jornal da Tarde, de São Paulo, datado de 30 de julho de 1973, que as últimas palavras da passagem de Lampião por Capela Sergipe , ao ver a saraivada de chumbo vinda da igreja, do Amparo, foram: “Vamos embora, que nesta cidade até os santos atiram”.
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